Sobre Ian McWhinney
O autor desse artigo é considerado por muitos como o genitor da MFC, com seus atributos de filósofo social e naturalista, ele influenciou e ainda influencia a nossa especialidade.
Sendo de origem inglesa, o Médico de feições tenras, com olhos cândidos e sorriso perene no rosto, nasceu em 11 de Outubro de 1926 e praticou a Medicina de Família e Comunidade com seu pai em Stratford (Inglaterra) por longevos 30 anos. Quando em 1968, ele se mudou para o Canadá, após um “fellowship” na escola de Harvard, em Medicina de Família com Robert Haggerty. Foi na Universidade de Western Ontario que se tornou o primeiro catedrático de MFC no país, tornando-se admirado como o “Osler” da especialidade no Canadá.
Sempre afeito às origens epistemológicas da nossa especialidade, ele se dedicava aos “Fundamentos da Medicina de Família”, usando sua experiência clínica vasta, com observações práticas de outros colegas, somadas a uma imensa e eclética biblioteca. Com essa expertise, insistia que a MFC deveria ser aprendida em cenários próprios da especialidade e ensinada por Médicos de Família.
Ian McWhinney é daquelas personalidades que parecem emanar uma áurea na qual cada palavra dita e escrita são embebidas por extrema sabedoria. O artigo em questão dessa semana é o “Problem-Solving and Decision-Making in Family Practice” que vamos dividir em duas partes para não perdemos a preciosidade de cada linha escrita.
Green et al.2001
O ecossistema de atuação de um Médico de Família e Comunidade é específico, como Green (2001) demonstra em “The Ecology of Medical Care Revisited”, revisando o artigo de White (1961). Lidamos mais com pessoas experimentando sintomas sem doença do que patologias em si, ou seja, o indiferenciado e inespecífico é a apresentação mais típica de queixas na Atenção Primária a Saúde. Por assim ser, precisamos de um “kit de ferramentas” e estratégias de raciocínio diferentes daqueles de setores hospitalares ou ambientes ultra específicos. Ian McWhinney nos propões seis.
I – O Padrão de Adoecimento Se Aproxima da Padrão das Doenças da Comunidade
Estamos inseridos no mundo das pessoas, com alta incidência de sintomas agudos de curso limitado, assim como a prevalência de doenças crônicas, acompanhado de grande número de problemas comportamentais. Apesar de didática, essa divisão é virtual, uma vez que lidamos com gente que tem problemas físicos, psicológicos e sociais (vide modelo biopsicossocial da Medicina).
Para navegar bem nesse “Mar de Incertezas” (Gérvas, Pérez, 2005) devemos estar adaptados para realizar duas tarefas:
1 – Perceber, nos momentos iniciais dos sintomas, quais são causadas por doenças graves e que ameaçam a vida, das passageiras e limitadas. Como ambas vem juntas e, inicialmente, pode ser indistinguível, essa tarefa não é simples. A tarefa aqui é equilibrar prudência e oportunidade com prevenção quaternária, para não virarmos solicitadores de “tudogramas”, como para também não atribuirmos a tudo “experiência da doença”.
2 – Ser capaz de distinguir os elementos físicos, sociais e psicológicos dos problemas dos pacientes. Essa distinção ajuda na compreensão ampla do problema, para, então, ser capaz de propor soluções mais eficazes. Uma senhora com cefaleia tensional por sobrecarga no trabalho devido à necessidade de sustentar o lar é um exemplo.
II – A Doença É Indiferenciada E Não Avaliada Previamente Por Outro Médico
Como visto no modelo de White e Green acima, as doenças nos chegam em um estado “desorganizado”, e esse conceito é fundamental! Explico, quando um paciente se queixa para o Médico dos seus sintomas ele não tem clara percepção da causa, então ele não narra sua história como quem leu o livro de patologia ou medicina interna, assim: adinamia, anorexia e colúria há 5 dias vem junto com anedonia, insônia e baixa autoestima há meses. O paciente não saber que para o Médico esses sintomas podem ser agrupados em duas entidades distintas: uma sugerindo hepatite e a outra depressão. Inclusive, a média de problemas apresentada por paciente em cada visita é de 2,54.
Quando o paciente nos apresenta seus problemas pela primeira vez, não há organização ou conceitos claros, ainda que ele tenha suas ideias sobre o significado dos sintomas, eles frequentemente não confluem com as ideias do Médico. Além disso, a forma que a doença é experenciada é influenciada fortemente pelas expectativas, medos e sentimentos da pessoa, e sua capacidade de expressar suas sensações em palavras.
Entramos, nesse momento, nomeando, identificando e ajudando no processo de realização do doente e sua doença. Quando e se ele chega a outro setor de atenção, a história que ele informará será diferente da apresentada a seu MFC, ela estará mais organizada.
Eu tenho visto cada paciente com suas histórias como uma aranha que tece uma teia. Umas são mais organizadas que outras, algumas com mais ou menos fios. Têm aquelas com insetos, parasitos ou doenças amarradas, que a gente identifica e faz algo, mas na maioria são somente fios. Evidentemente, eles também são fixados em algo, e esse terreno é o contexto biopsicossocial do paciente. Esses filetes narrativos podem prender e sufocar a própria pessoa, sendo aí onde entra o MFC. Colhendo a trama, organizando-a e costurando uma roupa sob medida que faz sentido para pessoa. No final ela a veste e sai do encontro melhor do que no início.
Outros pontos importantes sobre essa manifestação de problemas na APS, segundo McWhinney, são:
· Eles não vêm em ordem de prioridade, ou seja, o ponto mais grave pode ser deixado por último ou nem ser citado pelo paciente. Especialmente válido para as “queixas de maçaneta”.
· Os problemas mais sensíveis podem ser expressos em linguagem abstrata, indireta e metafórica. Uma vez um paciente relatou a mim que suas juntas estavam rangendo como bode para referir-se a sua osteoartrite. Ou, quantas variações e nuncias nas histórias de sintomas depressivos é possível colher? Infinitas.
· O problema nem sempre é uma doença.
· Muitas das informações presentes é “ruído”, isto é, não tem utilidade estrita em resolver o problema. Nesse estágio, o paciente tem pouco insight da significância dos dados apresentados. Daí vemos pacientes relatando uma amaurose fugaz casualmente, por exemplo.
No último ponto acima, discordo parcialmente do autor, pois esse “ruído” tem valor para o paciente elaborar seus pensamentos e para o Médico entender sua perspectiva de mundo, pois cada expressão, palavra escolhida e entonação empregada, ajudam a moldar uma imagem daquela pessoa.
Aguarde a próxima semana para continuarmos a nossa conversa!
Victor Kelles Tupy da Fonseca
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